Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

AS MOSCAS

          

             As noites de inverno chegavam cada vez mais cedo, cobrindo o dia com seu lençol de escuridão. Semáforos, placas, asfalto e bares... muitos bares, e pessoas.


   - Pra que tantas pessoa, meu Deus?


   Conversando e conversando: sujeitos sem predicado, num ato incompatível entre elementos tão distantes. Caminhava rua afora, caminhava, caminhava e lembrava. Aquele que ali ia, aquele bicho, era um homem, um sujeito sem predicado, uma notícia sem novidades, um jovem corcunda. Aquele era um jovem sem plumas. Aquele que percorria as retas tortas da avenida não tinha presente. Ao adormecer sob o cobertor úmido, ouvia o zumbir das moscas de velório e sentia arrepios, meio assim dormido e acordado. Amanhã conseguiria um mata-moscas. Aquelas moscas eram o seu cheiro, a sua respiração, as moscas eram os níqueis nos bolsos rasgados.


   Acordara tarde, apesar do sol forte. Garrafa quebrada de aguardente ao lado. O sol, tamanha claridade, ofuscava-lhe o olhar de morto-vivo, de gente que não parece gente e seu dia seguia como seu não houvesse dia. Caminhava. Bares de álcool e cafezinho, ônibus e mais ônibus.


   - Pra que tanto ônbus, meu Deus? Trapaiando a passagem pro outro lado da rua!


   Porto Alegre era um ônibus, um ônibus grande e lotado, cheirando a progresso. Quando ele entrava no progresso, não pagava passagem, pulava a roleta, ignorando a evolução. Descia em quantos outros cantos, escondia-se, observava; observava e analisava. O homem à moda bicho pedia e arrancava. Os bolsos eram empréstimos sem favor. E as moscas, as moscas de velório. Toda vez que conseguia uma gentileza monetária, as moscas voejavam esbaforidas e incessantes, zumbindo, zumbindo.


   - Hoje, tenho que comprá o porrete pras maldita.


   Certa tarde se deparou com um vira-lata. O animal olhava-o intensamente com um olhar triste, com seus olhos de cão. E coçava-se, coçava o pelo ralo de doença e abandono. Aquele cachorro era suas feridas sarnentas.


   - Quem gosta de animal vagabundo são as moscas, sai pra lá, sarnento. Me deixa.


   Pegou a garrafa de aguardente cujo gargalo lembrava-lhe do focinho seco do cão – “vai embora, vira-lata nojento, some”!


   Naquela noite, não fazia tanto frio. Assim mesmo gostava de cobrir a cabeça piolhenta e o pescoço encardido, evitando os faróis dos ônibus.


   - Quanto ônbus, a noite toda, é um inferno!


   E tentava dormir com seu estômago de canino faminto. Faminto... mas anestesiado de cheirar um anti-fome, um anti-tristeza, um anti-morte-súbita-de-sofrimento.


   - Os parcero de rua sempre pregavam, como um tal de Conselhero Salvador ou sei lá quem mesmo, que o mundo era grande, que o mundo era a rua e o verdadeiro verão era passá um domingo na Redenção, tomando banho no laguinho e cheirando um tal de loló. Só tinha que cuidá dos polícia, pé-de-porco. Escapá de mãe todo mundo escapa.


   E assim escapou da mãe e de sua mão pesada, preferiu as moscas, as moscas de velório. Mas nem sempre deixava que o remanescente lhe perturbasse os sonhos. E agora sonhava... usava camiseta branca e tênis sem cheiro de chulé. Dirigia-se ao trabalho, mas antes entrou num botequim e tomou um cafezinho bastante adocicado, pediu três torradas e um ovo frito. Saiu com uma pastinha preta e uma sacola limpa de mercado com a merenda. Ia pegar o ônibus quando sentiu um calor rançoso remexer sua orelha.


   - Que isso, vira-latas? Tá fazendo o que aqui de novo?


   E espantou-o com brutalidade. O cão era um ganido afastado, porém sem perder nada de vista. E ficou assim, de vigília noite após noite, dia após dia.


   As moscas sumiram por uns dias, contudo, retornaram quando José perdeu seu porrete. Naquele anoitecer, tinha dez reais no bolso para matar a fome de ventre liso e ainda sobraria para comprar o anti-insônia. Caminhou uns três quarteirões úmidos e mofos da capital. Lá, em frente àquele prostíbulo, descobriu que seu plano falhara e deveria percorrer mais e mais a cidade que ia ficando abandonada pelos sapatos e rodas. Atrás, um bafo quente de cachorro desterrado. E o caminhar trôpego, cansado.


   - Cinco pila, bota cinco pila. Como é que é?


   Um uivo estridente de faca em couro duro espantou as moscas, que fugiram a escolher outro semi-defunto. Passos ligeiros do tráfico se afastavam do local do crime. A cidade apagava uma a uma suas luzes de apartamento. Os ônibus continuavam carregando os vestígios da poeira exausta de trabalho. No velório ao luar, estava apenas um cão, com os olhos mansos e desentendidos, a lamber tranquilamente o pelo sarnento.


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