Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

Atrás do Crime - book trailer

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

MILAGRE DA VIDA

   
     “Eu vos declaro marido e mulher”, disse o padre, permitindo o beijo apaixonado do casal recém-formado. A confiança vista nos olhos de Edgar transmitia a Lara a certeza de que seriam muito felizes. Não sabia explicar, mas Lara havia sentido isso desde o primeiro momento em que seus olhos encontraram os dele, no shopping Santa Cruz, na lotada praça de alimentação. Havia sido inacreditável: em meio a tantas pessoas, Edgar lá estava, com seu olhar atento e tranquilo, fazendo-a esquecer-se da algazarra de corações solitários que ocupavam assentos e mesas, à espera da mesma sorte que ela, somente ela, teria naquela noite.

    Na lua-de-mel, Lara sentia-se radiante: era a esposa mais feliz do hotel. E dormia tranquila após um dia agitado, tendo em mente a imagem entorpecedora dos olhos de Edgar. De volta ao trabalho, quando a tarefa era desafiadora e seus colegas não tão cooperativos, recorria à lembrança dos olhos do esposo, sempre encorajando-a a confiar em si mesma.

    O tempo passou e ela, por mais que recorresse ao olhar límpido de Edgar, sentiu que algo faltava em suas vidas.

    - Um filho? – perguntou ele, um pouco assustado. E logo surpreendeu-a novamente, com um olhar de aprovação. Esse mesmo olhar encantou-a ainda mais quando ela lhe disse:

    - Parabéns! Você vai ser papai!

    Ambos estavam tão radiantes com a expectativa do primeiro filho que, por vezes, perguntavam-se: “Será possível tanta felicidade?” Enquanto isso, a barriguinha já crescendo era uma amostra do milagre da vida.

    Mas numa certa manhã, uma cólica forte despertou Lara de seu sono profundo e o milagre da vida, por alguma razão, mudou o seu curso. Foi a primeira vez que ela sentiu o olhar de lágrimas de Edgar. A perda da gravidez foi aterradora à sua pureza.

    Certamente, não desistiria. Tristeza se transformou em Perseverança. E inusitadamente, na manhã de um domingo ensolarado, Lara colocou dois sapatinhos delicados ao lado de Edgar. A comemoração foi imensa. Voltavam à vida os olhos do esposo que beijava sua boca, em meio a sorrisos quase infantis.

    Mas novamente, Lara perdeu o bebê. Não sabia mais o que fazer. Procurou os olhos de Edgar para se sentir segura, porém neles, só encontrou abismo. Disse-lhe que não perdesse a esperança. Ele fez que sim, transparecendo, porém imensa incerteza. Foram nove anos divididos entre a alegria de uma nova gravidez e o sofrimento de uma nova perda.

    Até que, certa vez, com seis meses, sentiu fortes contrações. Uma garotinha linda e frágil, com um pouco mais de um quilo, nasceu. A luta pela sobrevivência foi árdua, entretanto, o milagre da vida se deu e a felicidade dos olhos de Edgar, dessa vez, manteve-se por longa data. “Tantos obstáculos”, disse Lara ao esposo, “não representaram somente os inúmeros sofrimentos por que passamos, e sim uma vitória. A Vitória de nossa vida.”

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O BOSQUE DE ALICE

    Alice sempre adorara a liberdade. Criada no interior do estado, divertia-se livremente nos prados e ribeirões, colhia flores silvestres, fingia-se de bióloga, mergulhava, enfim, no mundo distante da imaginação. O que mais apreciava, porém, era o pequeno bosque fechado, onde penetrava diariamente, mas sempre curiosa do que poderia ser-lhe revelado. Averiguava raiz por raiz, caule por caule, folha por folha, e freqüentemente descobria novos segredos que, em seu coração, eram guardados a sete chaves.


    Alice era o bosque e o bosque aprendera a ser Alice. À sua volta, a família admirava de como eram parecidos – sempre curiosos, atentos, vigorosos e, acima de tudo, fechados. Aquele bosque já existia antes de a família da criança vir morar ali. Tendo sido sempre um agricultor, o pai decidira que deveriam deixar a vasta propriedade de terra por algum lugar mais próximo à cidade, onde Alice pudesse ter acesso à escola, e sua mulher, ao médico. Passados alguns anos, entretanto, pai e mãe notaram como sua filha era indiferente ao novo mundo que se lhe abria: ia cabisbaixa para a escola e voltava em silêncio, comentando não mais que o necessário, somente o que os pais realmente perguntavam-lhe sobre o andamento das aulas. Colegas, muitos. Amigos, nenhuns. A preocupação com a reação da filha já estava a incomodar o pai, até que esse resolveu abrir-lhe os portões que davam no bosque.


    Foi a solução, a princípio. A magia daquele lugar envolveu todo o corpo de Alice. Sentia-se vigorada, finalmente feliz, e seus dias passaram a ser compartilhados com as árvores, com as trilhas que percorria, com gafanhotos e borboletas.


    Durante a manhã, na escola. E ainda tinha a tarde toda livre, toda sua, somente sua, para correr feliz e sentir o ar fresco nos cabelos compridos e encaracolados, macios feito as folhas das árvores. Era por que sabia que depois da escola estaria no bosque, que passou a suportar mais as aulas da professora Citadina, que se encarregava de mostrar aos alunos o mundo, vasto mundo, em todos os pormenores: as pessoas, as diferentes culturas, as variadas línguas e os diversos propósitos de uma guerra. Com tudo isso, a menina não podia julgar mal sua professora pelo empenho em traduzir-lhes o mundo, mas nos testes e provas acabava demonstrando toda sua resistência, e seus segredos acabavam sendo revelados: o mundo que via era simplesmente preto e branco. E, algumas vezes, quando os assuntos eram mais complexos para a mente de uma pequena garota, como a questão da luta pelo petróleo, foi apenas com uma palavra que respondeu todas as questões da prova: preto. As conseqüências dessa revelação não poderiam ter sido piores: pai e mãe foram chamados à escola. Tal resposta suscitou diferentes opiniões: a diretora afirmava que a menina era semi-analfabeta; a professora, que Alice era racista; o pai, totalmente irritado, que ela estava de zombaria para com todos; e a mãe, finalmente defendendo a sua prole, afirmou que essa nascera para poetisa. Discussões desnecessárias, venceu a opinião da mais forte, a da diretora: era impossível que a estudante respondesse daquela forma se tivesse compreendido o enunciado de cada questão. E esse problema só seria resolvido se Alice passasse a ter aulas de reforço à tarde.


     Ao saber da decisão da reunião na escola, o mundo de Alice desabou em lágrimas fugidias e desesperadas. Tentou, no princípio, sensibilizar seu pai, mostrando-lhe um rosto de anjo em grande perigo; mas esse apenas impacientou-se, pois continuava acreditando que a filha zombara na prova. Recorreu então, aos braços acalentados da mãe, que sem voz ativa, apenas tentou consolá-la, lembrando que ainda teria seu bosque nos finais de semana; além disso, era apenas uma questão de tempo: logo entenderiam que ela não precisava de aulas extras. E foi nas palavras da mãe que Alice, então, amparou-se.
Iniciou-se no dia seguinte o tormento. Manhã, na escola; tarde, também. A primeira semana foi um verdadeiro suplício para quem sonhava acordada com o seu bosque frutífero, com os pássaros livres e coloridos, com os gafanhotos e as borboletas a percorrerem-lhe as mãos, com o caule das árvores a se exibirem virulentos até a copa. Mal via o sábado chegar e amenizar o seu martírio. As aulas sobre o mundo eram sangrentas, aterrorizadoras e as visões que com elas surgiam, continuavam sendo em preto e branco. Sabia que deveria parar com o devaneio e concentrar-se nas palavras da professora, pois somente assim, suspender-se-iam as aulas de reforço. Lutava consigo mesma, colocava a cabeça entre as mãos, suava frio; mas qual! No instante seguinte, estava novamente no bosque a correr, a imaginar que os caules sustentavam maravilhosamente bem o seu corpo, permitindo-lhe uma corrida suave, porém firme. Via também seus braços a assemelharem-se a galhos que ostentavam seus dedos, que aos poucos também se transformavam nas folhas mais exuberantes da floresta. Dedos ágeis, que vibravam conforme o vento e o calafrio suscitado com o frescor de menina criança. Era nesse devaneio que estava quando a professora teve de repetir a pergunta dirigida a ela:


    - Então, Alice? Como foi a Primeira Guerra Mundial?


    O fracasso fantasiado. Não sabia responder àquela pergunta nem a outras mais que não fossem relativas ao mundo no seu bosque fechado. Corou e baixou os olhos. Os colegas começaram a rir da pobre. A professora, tentando ajudá-la a sair daquela situação, reelaborou a pergunta:


    - Lembra do falamos a pouco? O que ocasionou essa guerra?


    Como Alice continuava em silêncio, Citadina ainda insistiu:


    - Vamos, menina! Fale qualquer coisa que souber. O nome de um país envolvido, ao menos.


    Então, vendo a aflição em que até a professora se encontrava por sua causa, decidiu-se a responder algo. Chegou a abrir a boca para dizer “preto”, mas lembrou-se dos problemas que tal resposta ocasionou. Pensou mais um pouco e finalmente disse:


    - Branco!


    As gargalhadas foram gerais na sala de aula. Alice, naquele dia, voltou transtornada para casa – o fracasso vivido era imenso. Seu único consolo era que no dia seguinte seria sábado.

    Mal amanheceu o dia, acordou completamente vigorada e disposta. Não contara nada aos seus pais: o pai não a compreenderia e a colocaria de castigo, e a mãe se entristeceria demasiadamente. Tomou um rápido café da manhã e correu para o seu, somente seu bosque. Trilhou entre as árvores sentindo-se rainha. Mais e mais adentrava na floresta e era como se o resto do mundo estivesse se esvaindo atrás dela. Olhava para todos os lados, num temor de que fosse lhe escapar qualquer segundo precioso de completa liberdade. Reviu os amigos pássaros, gafanhotos, borboletas e outros bichos tão amados. Quando finalmente alcançara o outro extremo do bosque, lá onde havia uma imensa araucária, parou extasiada com tamanha beleza! Ao mirar aquela árvore, sentiu-se impedida de desviar o olhar por um segundo que fosse. Foi então que passou a se sentir estranha. Olhou para seus pés, e percebeu que esses estavam mudando de forma e mergulhando profundamente na terra úmida. Depois, percebeu que suas pernas rapidamente estavam se alongando feito caule. Sua cor aperolada também a estava abandonando para dar lugar a um tom escuro. Encantada, viu seus braços e dedos adquirirem as formas de galhos e seus cabelos, de folhas. “Engraçado”, pensou, “também imaginei os dedos como folhas!”


    E, para terminar esta história, garanto a você, leitor, que dessa vez, não se trata da imaginação de Alice. Ela realmente se transformou na árvore mais fantástica daquele bosque. Embora pareça um final triste, não se engane: com sua nova estatura, ela nunca mais viu o mundo em preto e branco.

AS MOSCAS

          

             As noites de inverno chegavam cada vez mais cedo, cobrindo o dia com seu lençol de escuridão. Semáforos, placas, asfalto e bares... muitos bares, e pessoas.


   - Pra que tantas pessoa, meu Deus?


   Conversando e conversando: sujeitos sem predicado, num ato incompatível entre elementos tão distantes. Caminhava rua afora, caminhava, caminhava e lembrava. Aquele que ali ia, aquele bicho, era um homem, um sujeito sem predicado, uma notícia sem novidades, um jovem corcunda. Aquele era um jovem sem plumas. Aquele que percorria as retas tortas da avenida não tinha presente. Ao adormecer sob o cobertor úmido, ouvia o zumbir das moscas de velório e sentia arrepios, meio assim dormido e acordado. Amanhã conseguiria um mata-moscas. Aquelas moscas eram o seu cheiro, a sua respiração, as moscas eram os níqueis nos bolsos rasgados.


   Acordara tarde, apesar do sol forte. Garrafa quebrada de aguardente ao lado. O sol, tamanha claridade, ofuscava-lhe o olhar de morto-vivo, de gente que não parece gente e seu dia seguia como seu não houvesse dia. Caminhava. Bares de álcool e cafezinho, ônibus e mais ônibus.


   - Pra que tanto ônbus, meu Deus? Trapaiando a passagem pro outro lado da rua!


   Porto Alegre era um ônibus, um ônibus grande e lotado, cheirando a progresso. Quando ele entrava no progresso, não pagava passagem, pulava a roleta, ignorando a evolução. Descia em quantos outros cantos, escondia-se, observava; observava e analisava. O homem à moda bicho pedia e arrancava. Os bolsos eram empréstimos sem favor. E as moscas, as moscas de velório. Toda vez que conseguia uma gentileza monetária, as moscas voejavam esbaforidas e incessantes, zumbindo, zumbindo.


   - Hoje, tenho que comprá o porrete pras maldita.


   Certa tarde se deparou com um vira-lata. O animal olhava-o intensamente com um olhar triste, com seus olhos de cão. E coçava-se, coçava o pelo ralo de doença e abandono. Aquele cachorro era suas feridas sarnentas.


   - Quem gosta de animal vagabundo são as moscas, sai pra lá, sarnento. Me deixa.


   Pegou a garrafa de aguardente cujo gargalo lembrava-lhe do focinho seco do cão – “vai embora, vira-lata nojento, some”!


   Naquela noite, não fazia tanto frio. Assim mesmo gostava de cobrir a cabeça piolhenta e o pescoço encardido, evitando os faróis dos ônibus.


   - Quanto ônbus, a noite toda, é um inferno!


   E tentava dormir com seu estômago de canino faminto. Faminto... mas anestesiado de cheirar um anti-fome, um anti-tristeza, um anti-morte-súbita-de-sofrimento.


   - Os parcero de rua sempre pregavam, como um tal de Conselhero Salvador ou sei lá quem mesmo, que o mundo era grande, que o mundo era a rua e o verdadeiro verão era passá um domingo na Redenção, tomando banho no laguinho e cheirando um tal de loló. Só tinha que cuidá dos polícia, pé-de-porco. Escapá de mãe todo mundo escapa.


   E assim escapou da mãe e de sua mão pesada, preferiu as moscas, as moscas de velório. Mas nem sempre deixava que o remanescente lhe perturbasse os sonhos. E agora sonhava... usava camiseta branca e tênis sem cheiro de chulé. Dirigia-se ao trabalho, mas antes entrou num botequim e tomou um cafezinho bastante adocicado, pediu três torradas e um ovo frito. Saiu com uma pastinha preta e uma sacola limpa de mercado com a merenda. Ia pegar o ônibus quando sentiu um calor rançoso remexer sua orelha.


   - Que isso, vira-latas? Tá fazendo o que aqui de novo?


   E espantou-o com brutalidade. O cão era um ganido afastado, porém sem perder nada de vista. E ficou assim, de vigília noite após noite, dia após dia.


   As moscas sumiram por uns dias, contudo, retornaram quando José perdeu seu porrete. Naquele anoitecer, tinha dez reais no bolso para matar a fome de ventre liso e ainda sobraria para comprar o anti-insônia. Caminhou uns três quarteirões úmidos e mofos da capital. Lá, em frente àquele prostíbulo, descobriu que seu plano falhara e deveria percorrer mais e mais a cidade que ia ficando abandonada pelos sapatos e rodas. Atrás, um bafo quente de cachorro desterrado. E o caminhar trôpego, cansado.


   - Cinco pila, bota cinco pila. Como é que é?


   Um uivo estridente de faca em couro duro espantou as moscas, que fugiram a escolher outro semi-defunto. Passos ligeiros do tráfico se afastavam do local do crime. A cidade apagava uma a uma suas luzes de apartamento. Os ônibus continuavam carregando os vestígios da poeira exausta de trabalho. No velório ao luar, estava apenas um cão, com os olhos mansos e desentendidos, a lamber tranquilamente o pelo sarnento.


CAPIM MOLHADO

   Papéis avulsos espalhados na mesa. Calculadora e notebook lado a lado. Ligações, quantas ligações! Extratos bancários, quantos extratos bancários! Unidos por sete notas de cem dólares na carteira francesa, semiescondida no paletó de terça-feira. Sufoco amenizado pela sala climatizada, há dois anos pensada e reformada, status que nem todos que merecem têm. E o cheiro... cheiro de poltrona nova, de móveis novos, de caneta importada, afinal, que cheiro esse tipo de coisa tem? E a janela, sem enseada, mas com a visão de homens embutidos em sapatos, calça jeans e camisa entreaberta, cheirando à poeira de asfalto quente ou à fritura de lanchonete. Quantas vezes aquela janela não o fez perder um bom negócio! Funcionários cabisbaixos feito gente, principalmente quando avistavam o chegar obstinado e rápido do chefe – quanta prepotência, meu Deus, têm eles agindo assim, pedintes e não colaboradores!



   Mas nem sempre seu dia era assim. Às vezes um cheiro de capim molhado se misturava aos seus papéis. Atenda o telefone, Poe, concentre-se – e essas palavras ditadas pelo pensamento lhe ressoavam em volta do pescoço, recolhendo o orvalho daquele capim fresco. Era preciso concentração, concentração e avaliação. Tudo para que o velho pai se orgulhasse dele naquele plano distante chamado memória, ou invenção.
  

  À noite, o jantar e o jornal; o jornal e a internet; a internet e o banho; o banho; o boa-noite distante de Marialice e o dormir chacoalhado pelos sonhos. Mas que tipo de sonho? Era o bom pai e o curral dos fundos de casa. E a mãe, brinca comigo, mamãe, brinca comigo! Mas era a mãe embriagada com os contos ovalados e amontillados. A chuva, como chovia! O ar refinado de leite fervido e doce de maisena. As frestas. O frio luxuoso de luar de lua cheia. O frio. O frio, a fome, e a ternura. Brinca comigo, vira-lata, brinca comigo. O vira-lata não tinha olhos azuis.
  

  Mas um negócio importante deveria ser fechado. Liga para o diretor-geral do Uruguai, panaca, liga logo! Mande-lhe um e-mail, vamos, incompetente, mande um e-mail. Era difícil trabalhar com quem tinha sido ele um dia. Escreve que aceitaremos a proposta, vamos, escreve. O orçamento, abre o Word, verifique o orçamento. E essa planta? Quem colocou essa planta aí? Isso é flor? Como, se tem cheiro de capim, capim e estábulo? Tire-a daqui, incompetentes nauseabundos!


    Entretanto, era à noite que o capim molhado ressurgia da noite rubra, rubra, mas de vidro. Feito flor, flor de vidro. Paredes claras, pinturas famosas ininteligíveis, mobília clássica e caríssima, mesa retangular - preciosíssima, poltrona macia e importada, macia e vazia. Marialice. Ela e os dois filhos. Joga bola comigo, papai, joga bola. Não posso, não tá vendo que tenho que tirá o leite das vaca, moleque! Como era bom aquele bolo coberto de açúcar! Mas o que é isso, mulhé, papel assado dentro do bolo? Minha mãe era um forno de livros velhos. Leia uma história, mamãe, leia uma história. Mas ela cultivava mais e mais as suas ostras. E o passado vinha... e vinha forte, como chuva de tempestade, vendaval em clareira. Me dá dinheiro, papai, me dá dinheiro para comprar aquele autorama, todos os meus colegas já têm.


   O negócio foi fechado com sucesso. Lucros e lucros. Débitos e créditos. Uma maravilha! Poupança e investimentos recheados. Você tem que ser alguma coisa na vida, moleque, só pensa em vadiar. Quando tinha sua idade... Quero pôr uma cortina nesta janela, chega dessa visão de gente pobre, pobre e suada, cheirando à gordura. Entenderam? Uma cortina escura. Por que deixaram essa janela aberta? Sabem que não gosto de janela aberta! Afonso, feche a janela agora. Vamos, não seja preguiçoso. No banco, uma conta recheada.


   A estante de casa não continha nenhuma poeira. As empregadas se incumbiam da tarefa de fazer a prata brilhar, o espelho refletir, o chão reluzir. Mas e o porta-retrato? Ninguém percebeu que o porta-retrato da família está empoeirado, estúpidos? Que portarretrato raro, raríssimo. Comprara numa viagem a Londres, junto com Marialice. É lindo, Poe, é finíssimo! E tão delicado, é nele que toda sua família será guardada. Agora vamos almoçar, estou morta de fome, as crianças preferem hambúrguer. Beije-me, Marialice, beije-me. Que cabelos ondulados e ruivos. Ruivos e macios. Longos, cabelos de esposa jovem. Por que ninguém tirou o pó do porta-retratos? Paguei uma nota, incompetentes.


   Marialice parecia os livros velhos de sua falecida mãe. Mantinha-a também como um troféu que relembra um passado de bons tempos. Gloriosa, mas velha, e amarelada como aquelas antigas folhas que a custo não se desprendiam, resistindo a traças e às rápidas horas do tempo. Marialice, já falei que não posso, tenho que trabalhar. Tome essas passagens. Você julga que não a amo, pois então vá a Paris. Trate de se consolar. Marialice no avião. Marialice e os dois filhos. Tchau, papai, tchau. Na estante, esqueceu o livro de Machado de Assis.


   Finalmente sozinho. Já planejava o quanto poderia progredir nos negócios. Telefonar para Argentina, fechar negócios no Chile, fazer, por fim, a reunião para aplicar aquele novo software. Cortinas escuras e janela fechada. Sala climatizada, há dois anos pensada e reformada, status que nem todos que merecem têm. E o cheiro... cheiro de poltrona nova, de móveis novos, de caneta importada, afinal, que cheiro esse tipo de coisa tem? E a parede sem janela, enfim, sem janela e sem a visão daqueles homens antepassados seus. Passado é passado e as ligações lucros têm. Mas não, já falei que se Marialice ligasse, vocês deveriam dizer que estou ocupado, ocupadíssimo! Será que ninguém entende uma ordem minha?


   O final do dia, o início da noite – eis que um grande mistério tem. Paredes e móveis iguais. Família longe, mas aquele cheiro... Que cheiro forte de capim molhado! Que produto passaram para limpar a casa hoje? E quanto ao portarretrato? Não acredito! Quem trincou o portarretrato de prata? Falei para limpá-lo, não rachá-lo, estúpidos! A mão deslizando sobre o objeto valioso. Detalhe por detalhe, num designer de luxo. Por que você não tem mais cabelos longos, Marialice? Por que não tem? Mesmo assim ainda tinha uma certa beleza, beleza de livro velho, amarelado, mas ainda assim tinha uma certa beleza. Beleza de folha amassada, cheirando à antiguidade, e requerendo cuidados, cuidados em folhá-la.


   Acordou com uma nova expectativa. Fez a barba, pôs a gravata nova. Perfumou-se e decidiu que arrancaria as cortinas escuras de seu ambiente de trabalho, mas não queria saber da flor com cheiro de capim de novo. Continuaria fazendo negócios e negócios. Que a luz entrasse e iluminasse seus papéis e seu notebook. Os vidros permaneceriam fechados e o cheiro de ranço continuaria fora. Mas o sol, esse entraria pelos quatro cantos. Como a luz do sol anima um homem! Telefonema? De onde? Paris. Certo, pode passar.


   Nem a luz do sol ou de lustres de vidro iluminaria sua casa. A estante de casa não continha nenhuma poeira. As empregadas se incumbiam da tarefa de fazer a prata brilhar, o espelho refletir, o chão reluzir. Mas e o retrato? Esse é o mesmo retrato? Sem rachaduras, sem poeira, é esse o retrato? Beije-me, Marialice, beije-me. Brinque comigo, papai, brinque. Por que seus cabelos não são mais longos, Marialice, por quê? Foi a primeira vez que não olhou para o portarretrato.



Autoria de:

Cristiane Krumenauer

Publicado pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS - 2009

RELÓGIO DE PRATA

A Yasmyn

    Eu era uma criança. Não que tivesse idade para ser criança, mas meu espírito assim o era. A idade, até então, não havia se apresentado para mim como um baque de amadurecimento. A vida era leve, docemente leve. Comecei a namorar. Ainda assim, meu espírito era infantil e minha maior preocupação era reunir o time de vôlei na praia em frente à casa onde morava com meus pais.


    Lembro bem que o frescor da manhã me acordava todos os dias enquanto a visão da janela de meu quarto exibia uma praia incrivelmente ensolarada, que acariciava meu rosto. Não sei que energia invadia meu sangue e impulsionava-me para a vida... bem, para um jogo de vôlei, para ser mais específica. E se não estivesse disposta, sempre haveria alguém para incentivar a prática do esporte.


    - Então, vamos logo? - ordenava Bianca, uma morena cuja pele tinha a cor e o cheiro do sol do Rio de Janeiro.


    Eu também tinha a cor e o cheiro daquele sol, certamente. Ainda tenho hoje, apesar de ouvir o contrário de meus conterrâneos. Tenho ainda o sotaque cantante e chiado dos cariocas, mesmo ouvindo diversas vezes que minha fala está se distanciando da de minha terra natal. Não, nunca quis esse distanciamento. Mesmo os meus cabelos longos são cariocas, basta vê-los sob a luz do sol. O importante é que meu espírito continua lá.


    Divagações que me fizeram perder o foco do enredo... Então, certo dia, após uma partida violenta de vôlei que me fizera chegar em casa repleta de areia, meu pai anunciou:


    - Fui transferido. Vamos para outro Estado.


    E como a areia que cobria meu corpo, meu mundo caiu com essa notícia.


    - Não faz sentido. Há tantas oportunidades de trabalho com televisão aqui, por que motivo lhe transfeririam?


    - Exatamente por isso. Precisam de alguém com experiência por lá. Já está tudo certo. Prepare suas coisas. Partiremos daqui a uma semana.


    Hoje olho através de minha janela e não vejo mais aquela praia ensolarada. Ao contrário, a cidade acinzentada de cimento e concreto não me convida a levantar-me da cama. Não vejo mais Bianca, e sim milhares de pessoas nos seus trajetos casa-trabalho-casa, a maioria cabisbaixa e apressada. No caminho para a escola, em um metrô superlotado de pessoas que fixamente olham seus relógios de prata, tenho a impressão de que se dedicam a contar os minutos em que continuarão vivas para cumprir suas tarefas. O trabalho é muito, o tempo de vida é pouco. É necessário correr. Na saída do metrô, não há diferença: carros em alta velocidade ocupam seu espaço, ameaçando todos os demais em meio a reclamações.


    Sinto falta do frescor da praia. Fazem-me falta os sorrisos sob o calor intenso. E já comecei a planejar meu retorno, independentemente de meus pais. Entretanto, não sei o que de mim não retornará jamais. Sinto que uma parte de mim ficará no meio do caminho, não sei como definir. Penso que talvez eu tenha perdido um quê de meu sotaque. Ou que minha cor tenha perdido a vibração original. Reflito por muito tempo e finalmente descubro. O que perdi foi o meu espírito de criança, cuja única preocupação era o vôlei.


    Finalmente, amadureci, aprendi. Na verdade, agora percebo que todos amadurecem e isso é infalível. Somente agora compreendo as pessoas do metrô e como elas, vejo que o tempo, de fato, é um relógio de prata que está no pulso de todos, a contar os minutos de vida de cada um.