Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O BOSQUE DE ALICE

    Alice sempre adorara a liberdade. Criada no interior do estado, divertia-se livremente nos prados e ribeirões, colhia flores silvestres, fingia-se de bióloga, mergulhava, enfim, no mundo distante da imaginação. O que mais apreciava, porém, era o pequeno bosque fechado, onde penetrava diariamente, mas sempre curiosa do que poderia ser-lhe revelado. Averiguava raiz por raiz, caule por caule, folha por folha, e freqüentemente descobria novos segredos que, em seu coração, eram guardados a sete chaves.


    Alice era o bosque e o bosque aprendera a ser Alice. À sua volta, a família admirava de como eram parecidos – sempre curiosos, atentos, vigorosos e, acima de tudo, fechados. Aquele bosque já existia antes de a família da criança vir morar ali. Tendo sido sempre um agricultor, o pai decidira que deveriam deixar a vasta propriedade de terra por algum lugar mais próximo à cidade, onde Alice pudesse ter acesso à escola, e sua mulher, ao médico. Passados alguns anos, entretanto, pai e mãe notaram como sua filha era indiferente ao novo mundo que se lhe abria: ia cabisbaixa para a escola e voltava em silêncio, comentando não mais que o necessário, somente o que os pais realmente perguntavam-lhe sobre o andamento das aulas. Colegas, muitos. Amigos, nenhuns. A preocupação com a reação da filha já estava a incomodar o pai, até que esse resolveu abrir-lhe os portões que davam no bosque.


    Foi a solução, a princípio. A magia daquele lugar envolveu todo o corpo de Alice. Sentia-se vigorada, finalmente feliz, e seus dias passaram a ser compartilhados com as árvores, com as trilhas que percorria, com gafanhotos e borboletas.


    Durante a manhã, na escola. E ainda tinha a tarde toda livre, toda sua, somente sua, para correr feliz e sentir o ar fresco nos cabelos compridos e encaracolados, macios feito as folhas das árvores. Era por que sabia que depois da escola estaria no bosque, que passou a suportar mais as aulas da professora Citadina, que se encarregava de mostrar aos alunos o mundo, vasto mundo, em todos os pormenores: as pessoas, as diferentes culturas, as variadas línguas e os diversos propósitos de uma guerra. Com tudo isso, a menina não podia julgar mal sua professora pelo empenho em traduzir-lhes o mundo, mas nos testes e provas acabava demonstrando toda sua resistência, e seus segredos acabavam sendo revelados: o mundo que via era simplesmente preto e branco. E, algumas vezes, quando os assuntos eram mais complexos para a mente de uma pequena garota, como a questão da luta pelo petróleo, foi apenas com uma palavra que respondeu todas as questões da prova: preto. As conseqüências dessa revelação não poderiam ter sido piores: pai e mãe foram chamados à escola. Tal resposta suscitou diferentes opiniões: a diretora afirmava que a menina era semi-analfabeta; a professora, que Alice era racista; o pai, totalmente irritado, que ela estava de zombaria para com todos; e a mãe, finalmente defendendo a sua prole, afirmou que essa nascera para poetisa. Discussões desnecessárias, venceu a opinião da mais forte, a da diretora: era impossível que a estudante respondesse daquela forma se tivesse compreendido o enunciado de cada questão. E esse problema só seria resolvido se Alice passasse a ter aulas de reforço à tarde.


     Ao saber da decisão da reunião na escola, o mundo de Alice desabou em lágrimas fugidias e desesperadas. Tentou, no princípio, sensibilizar seu pai, mostrando-lhe um rosto de anjo em grande perigo; mas esse apenas impacientou-se, pois continuava acreditando que a filha zombara na prova. Recorreu então, aos braços acalentados da mãe, que sem voz ativa, apenas tentou consolá-la, lembrando que ainda teria seu bosque nos finais de semana; além disso, era apenas uma questão de tempo: logo entenderiam que ela não precisava de aulas extras. E foi nas palavras da mãe que Alice, então, amparou-se.
Iniciou-se no dia seguinte o tormento. Manhã, na escola; tarde, também. A primeira semana foi um verdadeiro suplício para quem sonhava acordada com o seu bosque frutífero, com os pássaros livres e coloridos, com os gafanhotos e as borboletas a percorrerem-lhe as mãos, com o caule das árvores a se exibirem virulentos até a copa. Mal via o sábado chegar e amenizar o seu martírio. As aulas sobre o mundo eram sangrentas, aterrorizadoras e as visões que com elas surgiam, continuavam sendo em preto e branco. Sabia que deveria parar com o devaneio e concentrar-se nas palavras da professora, pois somente assim, suspender-se-iam as aulas de reforço. Lutava consigo mesma, colocava a cabeça entre as mãos, suava frio; mas qual! No instante seguinte, estava novamente no bosque a correr, a imaginar que os caules sustentavam maravilhosamente bem o seu corpo, permitindo-lhe uma corrida suave, porém firme. Via também seus braços a assemelharem-se a galhos que ostentavam seus dedos, que aos poucos também se transformavam nas folhas mais exuberantes da floresta. Dedos ágeis, que vibravam conforme o vento e o calafrio suscitado com o frescor de menina criança. Era nesse devaneio que estava quando a professora teve de repetir a pergunta dirigida a ela:


    - Então, Alice? Como foi a Primeira Guerra Mundial?


    O fracasso fantasiado. Não sabia responder àquela pergunta nem a outras mais que não fossem relativas ao mundo no seu bosque fechado. Corou e baixou os olhos. Os colegas começaram a rir da pobre. A professora, tentando ajudá-la a sair daquela situação, reelaborou a pergunta:


    - Lembra do falamos a pouco? O que ocasionou essa guerra?


    Como Alice continuava em silêncio, Citadina ainda insistiu:


    - Vamos, menina! Fale qualquer coisa que souber. O nome de um país envolvido, ao menos.


    Então, vendo a aflição em que até a professora se encontrava por sua causa, decidiu-se a responder algo. Chegou a abrir a boca para dizer “preto”, mas lembrou-se dos problemas que tal resposta ocasionou. Pensou mais um pouco e finalmente disse:


    - Branco!


    As gargalhadas foram gerais na sala de aula. Alice, naquele dia, voltou transtornada para casa – o fracasso vivido era imenso. Seu único consolo era que no dia seguinte seria sábado.

    Mal amanheceu o dia, acordou completamente vigorada e disposta. Não contara nada aos seus pais: o pai não a compreenderia e a colocaria de castigo, e a mãe se entristeceria demasiadamente. Tomou um rápido café da manhã e correu para o seu, somente seu bosque. Trilhou entre as árvores sentindo-se rainha. Mais e mais adentrava na floresta e era como se o resto do mundo estivesse se esvaindo atrás dela. Olhava para todos os lados, num temor de que fosse lhe escapar qualquer segundo precioso de completa liberdade. Reviu os amigos pássaros, gafanhotos, borboletas e outros bichos tão amados. Quando finalmente alcançara o outro extremo do bosque, lá onde havia uma imensa araucária, parou extasiada com tamanha beleza! Ao mirar aquela árvore, sentiu-se impedida de desviar o olhar por um segundo que fosse. Foi então que passou a se sentir estranha. Olhou para seus pés, e percebeu que esses estavam mudando de forma e mergulhando profundamente na terra úmida. Depois, percebeu que suas pernas rapidamente estavam se alongando feito caule. Sua cor aperolada também a estava abandonando para dar lugar a um tom escuro. Encantada, viu seus braços e dedos adquirirem as formas de galhos e seus cabelos, de folhas. “Engraçado”, pensou, “também imaginei os dedos como folhas!”


    E, para terminar esta história, garanto a você, leitor, que dessa vez, não se trata da imaginação de Alice. Ela realmente se transformou na árvore mais fantástica daquele bosque. Embora pareça um final triste, não se engane: com sua nova estatura, ela nunca mais viu o mundo em preto e branco.

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