Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

Atrás do Crime - book trailer

quinta-feira, 20 de março de 2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

O INDIGENTE








        Eu o havia conhecido do colégio, quer dizer, se é que pode se dizer que alguém conhecesse de fato aquele garoto. Ensimesmado, tímido ao extremo, cabeça baixa como se temesse a todos, era um mistério que logo se tornaria alvo de piadas dos colegas e até de alguns professores. Às vezes, surgia na escola com hematomas, visíveis nos braços, nas pernas, no pescoço, pelo que deduzíamos que os pais eram bastante violentos. Não falava. Não ria. Não chorava. O único som que emitia era um assobio ininterrupto, baixo e constante, à semelhança do vento. Era como se respirasse com dificuldade e o esforço que precisava fazer fosse revelado por esse desabafo angustiante.
      Ao contrário do que representava para muitos, aquela criatura despertava-me o interesse. Por diversas oportunidades, tentei travar contato com ele durante os recreios, antes ou depois das aulas, mas sempre falhando na minha busca por amizade. Desejava, sim, ser amiga daquele garoto. Chamava-se Alexandre. Era diferente dos demais e era exatamente isso que me fazia procurar sua amizade, embora todo o mistério que o envolvia provocasse calafrios tanto em mim como na escola inteira. Quando meu ato despertou a admiração por tanta coragem, confesso que fiquei lisonjeada e isso serviu como impulso para continuar procurando-o.
      Os anos passaram e meu fascínio por aquela pessoa esquelética e silenciosa foi arrefecendo. Ainda sentia uma dolorosa piedade por sua solidão e abandono, mas a maturidade me ensinou a não oferecer mais ajuda a quem a recusasse: “Não quer, então, se vira!”.
      Cresci. Já tinha 25 anos quando minha irmã e eu fomos convidadas a passar um fim de semana na nova casa de nosso tio, que ficava a uma meia hora da pequena escola onde eu estudara. Para chegarmos lá, entretanto, era necessário rodar duas horas numa estrada sem asfalto, repleta de pedregulhos que faziam o carro oscilar numa desvairada agitação. Descemos do automóvel sentindo a náusea subir e descer de nossas gargantas.
      Após alguns momentos em que recobramos o ânimo, vislumbramos a casa do tio. A madeira tinha sido recentemente pintada de azul e havia tantas frestas entre uma tábua e outra, que o frio cortante do inverno serrano entrava destemido por todos os cômodos da casa. Como chegamos na parte da manhã, aproveitamos para nos aquecer sob o sol, enquanto a amante do tio (ele sempre fora mulherengo) preparava uma galinhada no fogão à lenha, servindo antecipadamente um vinho tinto caseiro, feito com as uvas daquela mesma propriedade.
      À tarde, calçamos uns sapatos velhos que havíamos trazido e fomos caminhar. Nosso tio ia explicando o que havia mudado na região desde que partíramos para a cidade. Passamos por entre os parreirais repletos de uva, temendo algumas abelhas que insistiam em seguir o perfume adocicado de minha irmã, e admiramos as hortênsias que coloriam a estreita estrada de chão.
      À noite, o frio foi cruel. Sem o sol para nos aquecer, todos se reuniram em torno do fogão à lenha. O vento gélido invadia a casa por todas as frestas que encontrava pela frente e minha irmã e eu enfiávamos as mãos dentro das mangas do casaco, numa tentativa afoita de fugir daquele frio terrível. Dormir foi ainda pior. Não havia cobertores suficientes e o fogo foi apagado. Mesmo permanecendo com as roupas que havíamos trajado durante o dia todo, nada foi suficiente para nos aquecer. Enquanto estávamos deitadas, podíamos escutar nitidamente o assobio do vento. Era um som contínuo, forte e angustiante.
      - Esse som – comentei com minha irmã – me faz lembrar do Alexandre.
      - Que estranho! Parece que o vento está chorando! Na cidade, o som é tão diferente! Mas aqui, dá até vontade de chorar também – disse ela, comovida.
      O som era tão persistente que nos impediu de cair no sono de imediato. No dia seguinte, pelas aberturas da casa, vimos flocos de neve caindo, embranquecendo a paisagem serrana. Fomos chamadas para tomar um café bem quente e nos sentarmos novamente em torno do fogo.
      - O que há naquela escadaria velha? – perguntou minha irmã, sempre curiosa de tudo.
      - Um sótão. Ainda tem alguns móveis dos antigos donos lá em cima – respondeu o tio.
      - Podemos subir?
      Subimos a escadaria e abrimos a porta cheia de teias de aranha. O chão rangia a cada passo e, apesar de não haver luz, uma pequena janela iluminava o interior do ambiente. No sótão, havia um berço antigo, completamente empoeirado, com um velho colchãozinho todo rasgado.
      - Este era o quarto do Alexandre – disse meu tio. – Vocês sabem: aquele esquisitão que estudava com vocês. Dizem que os pais o aprisionavam no sótão porque tinha problemas mentais.
      - Então essa casa era do Alexandre? E por que um berço? Ele já estava bem crescidinho...
      - Não sei, acho que levaram a cama do rapaz, mas acabaram deixando o berço.
      - Ah, pode ser. E o que aconteceu com ele depois que nos mudamos para a cidade? Ele ainda mora por aqui?
      - Então vocês não souberam? Dizem que numa noite de inverno, fugiu por essa janelinha e desapareceu. Nunca mais ninguém soube dele. O maltrato dos pais era conhecido por todo mundo. Uma noite, o garoto cansou de tanto sofrimento e pulou por essa janela. Deve ter morrido, porque fazia um frio medonho naquela noite. Nunca mais ninguém soube dele.
      Aquelas informações provocaram um calafrio em minha espinha. Podia ser apenas coincidência, mas o som que ouvimos a noite toda lembrava-nos muito bem daquele que Alexandre emitia na escola. Uma mistura de terror e arrependimento invadiu minha alma. Ele era um garoto que precisava de ajuda e minha única preocupação infantil era tê-lo como amigo e exibir minha coragem aos demais. Rezei com muita fé, pedindo que me perdoasse.
      O fim de semana passou rápido e tivemos que voltar para a cidade. Durante os primeiros quilômetros, ainda escutávamos o sopro de angústia do vento. Quanto mais nos distanciávamos, porém, menos audível o som se tornava. Quando finalmente o som parou, olhei para trás, na esperança de rever Alexandre, e acenei com a mão como que em despedida. Minha irmã não compreendeu para quem eu havia acenado.
      O carro continuou sua longa trajetória. Nossas vidas continuaram cada qual sua trajetória. Mas em algum lugar do passado, a vida de Alexandre parou... e ninguém, nem eu, fez nada para ajudar!

sexta-feira, 7 de março de 2014

CHAMAS DA NOITE


EM BREVE, ROMANCE POLICIAL NAS LIVRARIAS DE TODO O BRASIL! 
 "As chamas, em questão de segundos, dominaram o local, gerando pânico naqueles que, inutilmente, procuravam uma saída. Por todo lado, fumaça. Antes mesmo de a luz se apagar por completo, a visibilidade era mínima. Somente uma espessa camada de fumaça negra era nitidamente percebida: ela chegava agressiva, invadia todas as divisórias, incluindo os banheiros, onde alguns ingenuamente acreditavam poder se esconder. Era fatal: a fumaça negra era uma terrível assassina, espalhava o rastro da morte a seus pés.
Quando nossos amigos e alguns bombeiros conseguiram, do lado externo, derrubar parte da parede para que, finalmente, saíssemos do local do incêndio, fiquei aliviado. Ajudei minha sogra a sair com vida, depois retornei, ajudando ou quase empurrando meu sogro para fora. Ele queria ficar ali, não sei se só para ajudar quem precisasse ou se para ser consumido pelas chamas – aquele lugar era a vida dele sendo queimada."

quarta-feira, 5 de março de 2014

O CARNAVAL





        Milhares de foliões se reuniam em todas as partes do Rio de Janeiro. Como sempre ocorria todos os anos, o carnaval não era sinônimo de feriado, de diversão ou de descanso para seu Carlos e os colegas. Ao contrário, esse era um dos períodos em que mais trabalhavam. Seu Carlos, homem de cinquenta anos aparentando ser muito mais velho do que realmente era, despertava às 4 horas da manhã, trajava seu uniforme surrado – chapéu, camiseta e calças cor-de-laranja, um sapato preto para contrastar – e ia direto para o ponto de ônibus. Às 5 horas, o coordenador distribuía os locais a serem varridos e lá iam, ele e os demais garis, num compasso alaranjado, com a expectativa de serem mais fortes do que o sol quente de verão.
A cena era sempre a mesma: o dia posterior ao carnaval era um verdadeiro pesadelo. Seu Carlos varria as centenas de milhares de latas de cerveja que desconheciam o lugar certo onde deveriam ter caído – no lixo. Varria também papeis, restos de comida, garrafas e até retalhos de fantasias. Enquanto varria todos aqueles restos, seu Carlos se lembrou do primeiro carnaval que passara sendo um gari. A esposa, impaciente, queria sambar e o marido não a acompanharia. As filhas, aflitas, sambariam sem nenhum traje adequado, porque não tinham dinheiro para a fantasia. Foi então que o pai voltou para casa, trazendo uma imensa fantasia que achara enquanto limpava os desperdícios da humanidade. Houve gritos de êxtase e alegria, as filhas colocando a roupa e mirando-se no espelho, encantadas com o presente do pai. Como havia apenas um traje, elas se revezariam: a primeira noite seria da mais velha.
Seu Carlos levou a mão à testa, enxugando o suor que teimava a escorrer em seus olhos, provocando uma ardência que se transformava em lágrimas, e logo voltava a varrer. Era um homem repleto de lembranças. E como não ser? Se cada varrida nas latas de cerveja e nos resíduos esquecidos era como se varresse as memórias de cada folião que passara por aquele local na noite anterior? Seu Carlos, então, sentia-se como o responsável por limpar toda a sujeira da cidade e, fazendo isso, também estaria limpando todas as más lembranças do carnaval, inclusive as suas próprias.
Por que se sentia assim? Qualquer um em seu lugar entenderia. A filha mais velha, na primeira noite de carnaval, foi quem trajou a fantasia. Maquiou o corpo todo com glitter e mostrou o resultado ao pai:
- Você parece uma princesa, Selene!
Depois saiu com as amigas, cantando eufóricas, descendo as escadarias do morro, embora os relâmpagos prometessem uma forte tempestade.
- É só chuva de verão – falou a mãe, despreocupada.
O céu desabou naquela noite sombria e Selene, nem no dia seguinte, nem nunca mais, voltou a aparecer. Seu Carlos agora sentiu um tecido prender-se na vassoura, impedindo-o de prosseguir com seu trabalho. Abaixou-se e o removeu com cuidado para não rasgá-lo. Trava-se de um tecido de seda. Por coincidência, tinha as mesmas cores da fantasia que Selene havia usado na noite em que desaparecera. Por um momento, levantou-se e olhou ao seu redor, na esperança de reencontrá-la. Nada. Aquilo já era passado, um passado que algum gari, assim como ele, já deveria ter varrido para longe de seus olhos e de sua vida.
Ao meio-dia, quando seu Carlos se juntava aos demais colegas para o almoço e, posteriormente, para uma soneca em meio à praça, uma reunião foi feita. Seu Carlos mal ouvia Juvenal, o líder do grupo, falando. O que pôde entender era a respeito de fazerem uma paralisação ou greve, coisa assim. Como não compreendeu, retornou ao trabalho depois do cochilo de 15 minutos, mesmo não avistando mais colega de trabalho nenhum.
Seu Carlos olhou para a imensidão de lixo e sujeira espalhada pelas ruas por causa da greve dos garis. Não queria ir para casa, ver os olhos da mulher a incriminá-lo por ter levado a maldita fantasia para as filhas, e, resignado, pôs-se a varrer. Varria com intensidade, queria remover todas as lembranças terríveis deixadas para trás numa lata de cerveja, num pedaço de tecido, num objeto qualquer.
Varria e varria, pois varrendo, seu Carlos acreditava que poderia limpar toda a sujeira da humanidade.