Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

Atrás do Crime - book trailer

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O FÃ

   Aconteceu o que tanto queria. Ser reconhecida por um leitor na rua, ou melhor, numa churrascaria. Fiquei sem palavras. O garçom ofereceu-me uma maminha ultra-assada. Eu, gaúcha de carteirinha e certidão de nascimento, disse:

   - Prefiro malpassada. E quanto mais suculenta, melhor. Gosto da carne cheinha de sangue.
Ele me olhou de soslaio e de repente, perguntou:

   - Você não é aquela escritora que vive matando personagens? A tal da Cristiane Krum... Krumnauar (ninguém sabe mesmo pronunciar meu sobrenome!)

   - Sim, sou eu – respondi, toda feliz de ser reconhecida por um fã.

   O garçom sacudiu a cabeça, pensativo, com o espeto de maminha torrada na mão esquerda e uma faca afiada na direita.

   - Por que você matou o cara? Eu gostava dele, achava que aquele personagem devia viver.

   - Que cara?

   - Ah, você não sabe? Deve ter matado um monte de personagem, então.

   Remexi na cadeira:

   - Olha, apenas fui coerente com a história. Se o personagem morreu, é porque tinha que morrer – respondi, sem saber ainda de qual personagem o garçom falava.

   - Isso é egoísmo. Quando o leitor gosta, você vai lá e mata o cara? – Ele ainda segurava a faca. Parecia que a apontava para mim.

   - Ah, desculpe – era prudente não contradizer alguém armado.

   - Vai querer malpassada mesmo ou esta maminha serve? – agora a faca balançava de um lado a outro.

   - Serve sim, serve sim.

   Achei melhor uma carne torrada no meu prato do que crua. Sabe-se lá o que ele serviria depois. 


   

Cristiane Krumenauer
Autora de Atrás do Crime, Chamas da Noite e da série Contos da Namíbia

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

DiNaMiCiDaDe EcOnÔmIcA


   O celular de Afonso foi roubado por João que vendeu o aparelho ao Pedro da 25 de Março que revendeu a d. Fernanda que presenteou a filha Maria Teresa.

   Maria Teresa ficou feliz com o presente. Pena que alegrias assim duram pouco.

   Três dias depois, a menina foi assaltada por João que, uma vez mais, tratou de vender o aparelho a Pedro, na 25 de Março, e assim a economia do país estava garantida e a circulação monetária se dava... sem problema algum.



Cristiane Krumenauer
Autora de Chamas da Noite, Atrás do Crime e da série Contos da Namíbia

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

PeSsoAs ViVaS NuM ÁlbUm dE FotOgrAfiAs

   - Já escolheu seu presente de Natal, Beto? Já escolheu? À essa altura, saiba que seu delegado já foi lembrado pelo Papai Noel. O superintendente dele, também. Até o promotor e o juiz já foram agraciados... Não vejo por que um agente não pode também ganhar um presentinho.

   - Se o Papai Noel está envolvido em sujeira, doutor, então vou esperar meu presente de outro velhinho...

   Carlos chegou em casa exausto. Ninguém lhe enfrentava, exceto aquele inspetor de polícia medíocre, e isso vinha desde o primeiro dia em que se cruzaram. Ainda irritado, abriu uma portinhola secreta do escritório, escondida por um tapete suntuoso, e retirou de dentro algo que mantinha oculto aos olhos de todos.

   - Que é isso, papai? – perguntou o filho, que flagrou o pai mexendo no compartimento secreto.

   Um dossiê que pode me pôr atrás das grades, pensou em dizer, mas ao invés disso, respondeu:

   - Um álbum de fotografias, filho. Com tudo que eu já comprei na vida.

   O filho, curioso, sentou-se ao lado e pôs-se a folhear o livro. Ele ficava assombrado com o que via. A cada página virada, a mesma impressão esquisita de que as pessoas retratadas... eram reais! Não pareciam apenas fotografias. Algumas vezes, percebeu que elas até piscavam ou moviam a cabeça. Era um gesto quase imperceptível, mínimo. Mas verdadeiro. Bem verdadeiro.

   - Eu conheço este daqui – falou o menino.

   - Sim, verdade. É um político importante de Brasília.

   - E o senhor comprou ele, papai?

   - Bem... tudo tem o seu devido preço.

   - E existe algo que o senhor não tenha conseguido comprar?

   Carlos pensou em Beto, o agente que ousara lhe dizer não.

   - Filho, preste atenção no que vou lhe falar. É um sábio ensinamento que herdei de seu avô: se não conseguir comprar algo ou alguém, é por que não usou a estratégia certa. Se alguém não estiver à venda, compre o irmão, a mãe, o tio, enfim... mas compre, porque comprar pode ser um bom investimento.

 O menino concordou, sem entender direito nem dar tanta importância. Apenas continuou folheando o álbum até chegar a outras fotografias que falaram alto ao seu interesse.

   - Ah, veja, papai, é a mamãe! Ela está segurando a mão... de um policial? E na página seguinte, um bebê? Ora... sou eu!

   Alexandre sorriu, satisfeito:

   - É, filho, você vê? Sou mesmo um especialista neste mercado.

   

Cristiane Krumenauer é autora de Atrás do Crime, Chamas da Noite,
Memória, Imaginação e Narração e da série Contos da Namíbia.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

J R Fontes - O Doutor da literatura policial brasileira


A Maldição do Nome
Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2011.


Olá, leitores fascinados pelas estimulantes estórias policiais. Hoje, tem matéria sobre Joaquim Rubens Fontes e sua obra A MALDIÇÃO DO NOME (Edições Galo Branco, 2011). Ele é autor premiado de nove livros e conhece como ninguém como escrever um bom mistério! Vamos a ele? 



RESUMO:

Uma das tristes marcas herdadas pela República, especialmente no interior, foi o coronelismo. Qualquer cabo eleitoral considerava-se competente para controlar a vida das pessoas e nomear as autoridades municipais, com poderes sobre a vida e a morte das pessoas. Bastava não ter muito caráter, nem se importar com a ética, e ter prestígio junto aos homens do governo.

Muitas cidades se tornaram feudos de famosos coronéis, geralmente filhos de famílias importantes, que tinham forte ascendência sobre o delegado, os vereadores, o prefeito, o juiz e, quase sempre, até sobre o pároco. Para sobreviver, a população era convencida a adotar a política de não se importar com eles, para não ser perturbada. Os poucos que se revoltavam eram forçados a mudar de opinião, a calar ou a desaparecer da cidade, para fugir às mais terríveis ameaças.

Inconformado com a perda de uma amiga, Da Mata, modesto professor da escola, quis saber das circunstâncias do acidente que a vitimara e acabou posto contra o exército inimigo. Mas não se intimidou. Ex-repórter, conhece os segredos de uma investigação. A seu lado, apenas uma cadela, Kara, cujo nome, lembrança de uma amaldiçoada princesa egípcia, leva pânico às hostes inimigas. E Kara é realmente a heroína dessa aventura.



ANÁLISE

   Em se tratando de literatura policial, parece ser suficientemente agradável ao leitor o crime e a investigação que leva o “detetive” a explorar os caminhos escusos até chegar a um culpado. No caso de Joaquim Rubens Fontes, entretanto, tenho que frisar um quê a mais em seu romance: a presença mística e, ao mesmo tempo, heroica de Kara, uma rottweiler que trata de uma questão sempre existente quando o gênero literário é o policial. Refiro-me à ambiguidade bem e mal.

   Kara, a linda rottweiler, representa em si toda essa disputa constante entre o certo e o errado. Ela, por si só, é boa e má concomitantemente, sendo, portanto, ambígua.

   Por sua vez, Kara também não é apenas uma cachorra. Simbolicamente, ela representa o corpo do seu dono, o professor Da Mata, bem como substitui as armas que ele não pode possuir por não ser um agente da lei. Assim, quando as batalhas forem travadas, caberá a Kara não só proteger o dono como também ajudá-lo a derrotar os inimigos fortemente armados.

   Já Da Mata, o protagonista, vai atuar como o cérebro da investigação contra o crime organizado, chegando mais longe que a própria polícia – corrupta, conivente com os criminosos. Motivado a apenas desvendar os mistérios que levaram uma amiga a morrer num acidente de automóvel, Da Mata vai descobrindo, passo a passo, uma rede poderosíssima do crime. Não é segredo para o leitor: todos sabem de imediato que os responsáveis são membros de uma tradicional família, os Floresta. O obstáculo maior, portanto, não é desvendar a identidade dos bandidos, e sim, colocá-los atrás das grades em um país em que o dinheiro compra impunidade.

   Como você, leitor, deve ter percebido, os nomes das personagens são bastantes simbólicos. De um lado, Da Mata – representando o bem e o agente pensante. De outro, os Floresta – representantes do mal e também agentes pensantes, embora o leitor não tenha acesso ao raciocínio deles, visto o narrador acompanhar a estória a partir da visão do mocinho do enredo.

   Refletindo sobre os nomes dos personagens, “Mata” consiste em um ambiente natural onde alguém pode caminhar com alguma dificuldade, mas ainda assim com alguma visibilidade. Comparando-se “mata” com “floresta”, a última tende a ser repleta de árvores, normalmente com copas mais altas, sendo mais escura e misteriosa.

   Jean Chevallier e Bertrand, no Dicionário dos Símbolos (Ed. Teorema, 1994), discorrem sobre o último termo:

Menos aberta do que a montanha, menos fluida do que o mar, menos subtil do que o ar, menos árida do que o deserto, menos escura do que a gruta, mas fechada, enraizada, silenciosa, verdejante, sombria, nua, múltipla, e secreta, a floresta de faias é arejada e majestosa; a floresta de carvalhos, nos grandes caos rochosos, é céltica e druídica; a de pinheiros, nas encostas arenosas, evoca um oceano próximo ou origens marítimas. E é sempre a mesma floresta. (Bertrand d’Astorg).

 Na literatura (...) a floresta gera angústia e serenidade, símbolo de opressão e de libertação.
Talvez seja por tudo isto que, em termos psicanalíticos, a floresta se encontra entre os grandes símbolos do inconsciente. Se pensarmos nos contos de fadas, lendas e mitos de muitas tradições, ou no folclore popular do mundo inteiro, veremos que neles abundam imagens de florestas que devem ser percorridas, atravessadas, e desvendadas nos seus caminhos labirínticos.
   Assim, cabe a Da Mata percorrer os labirintos do planejamento do crime até chegar aos verdadeiros chefes do poder, os Floresta, tendo que trilhar um caminho obscuro e repleto de perigos para que seu propósito se concretize.

   E, enquanto o mocinho vai fazer essa trajetória do pensamento (afinal, ele simboliza o cérebro), sua cachorra Kara vai atuar com o corpo. Ambos, unidos, tornam-se uma arma infalível, à altura do crime organizado, e terão condições de derrotá-lo.


SOBRE O AUTOR:

   Mineiro residente no Rio de Janeiro, Joaquim Rubens Fontes é Bacharel em Jornalismo e Letras, com especialização em Português e Filosofia Medieval. É Mestre e Doutor em Literatura Brasileira. 

   Trabalhou como repórter policial no jornal Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro. Foi por 31 anos, funcionário do Banco do Brasil. Lecionou no curso de Letras da Universidade Santa Úrsula. 

   Tem nove livros publicados, sendo um técnico e uma pesquisa de pós-doutorado. Sua produção literária já lhe rendeu oito prêmios.


***

   Antes de encerrar, gostaria de agradecer ao Joaquim, pois, enquanto esta matéria aguardava o momento certo para ser publicada, eis que recebo um presente lindo (e bastante útil, por sinal). Ah, eu adoro os Correios rsrs.



   Gostaram da matéria? Comentem, sigam o blog e compartilhem à vontade. Vamos juntos levar a literatura policial adiante!








segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

VeRdAdEs ReVeLaDaS



   D. Sônia era uma velhinha sem filhos, com alguns parentes aqui e ali, e cheia... cheia de dinheiro. A família, repleta de inveja, sequer telefonava no seu aniversário. De certo, pensavam que dinheiro comprava tudo, inclusive o papel de fazer companhia a um idoso.

   - E a D. Sônia? – perguntavam os vizinhos aos parentes da idosa.

   - Tá lá, cheia do dinheiro – era só o que respondiam, como se isso resumisse tudo. Era nítido até certo desprezo na resposta. Parecia que a boa senhora pecava por ter dinheiro, como se fosse algo sujo, algo que ser humano nenhum desejasse ter.

   Os anos foram passando e, obviamente, não traziam consigo nada de melhor a d. Sônia. Seu corpo, cansado; e o coração, sozinho, foram amargando o passar do tempo.

   Um dia, ela caiu doente. Acamada, foi visitada por amigos das redondezas, vizinhos, e até a diarista Albertina largou tudo que fazia para correr até a generosa d. Sônia, que a tirava do aperto várias vezes e abastecia a cozinha de suprimentos para alimentar os numerosos filhos.

   - Ai, d. Sônia, agora a senhora não pode mais ficar nesta casa imensa sozinha. Vou cuidar da senhora, virei todos os dias.

   Albertina se transformou em enfermeira, cozinheira, amiga, filha, enfim... em tudo que d. Sônia precisava. E encheu a mansão com seu falar alegre, rápido e sem correções gramaticais. Contava desde as novelas até as fofocas do bairro, e tanta disposição foi preenchendo o vazio da idosa, que logo se recuperou e pôde voltar à rotina com saúde dobrada.

   Os parentes logo ficaram sabendo, por boatos, pois há tempos que os pés não frequentavam a casa da idosa, que a diarista ganhava importância e podia representar um risco ao futuro dos bens que lhes seriam destinados. Passaram, então, a ver d. Sônia semanalmente, revezando-se entre si no sacrifício, a fim de avaliar o negócio de perto e garantir que d. Sônia não fizesse besteiras por causa da idade avançada. Aproveitavam, também, para fazer maledicências a respeito de Albertina. Segundo eles, essa não seria uma pessoa confiável, de modo que era um risco considerável manter pessoa com tão má reputação em casa habitada somente por uma idosa indefesa.

   D. Sônia silenciava diante de tais comentários. Apenas ouvia os parentes, enquanto tomava sua xícara de chá no deck que dava de frente para a piscina. Não refutava nem uma nem outra palavra, e assim, os parentes julgavam estar abrindo os olhos da velha e conquistando a confiança dela. E a relação, antes opaca e inexistente, passou a ficar colorida e próxima. Jantares aos parentes foram dados, ocupando, enfim, a imensa mesa da sala de jantar. Todos riam alto, comendo e bebendo com satisfação, tirando proveito do dinheiro que num passado não tão distante “repudiaram”.

   Mas numa manhã de sábado ensolarado, a idosa voltou a ficar doente. Era folga de Albertina, então, estando com a casa cheia de familiares, d. Sônia pediu que lhe servissem o café da manhã na cama. Não demorou para que uma bandeja bem-servida fosse colocada à disposição. Em seguida, pediu ajuda para fazer a toalete, ao que a sobrinha se apresentou, levando a tia e ajudando-a no lavabo. Mais tarde, sentiu fortes dores abdominais, pelo que pediu que alguém pegasse uma fralda geriátrica no armário e colocasse nela, evitando, assim, uma sujeira desagradável na cama de lençóis importados. A fralda não tardou a aparecer, mas dessa vez, ninguém se prontificou em ajudar a idosa, afirmando não terem experiência no assunto.

   O dia seguinte foi mais embaraçoso. D. Sônia sequer conseguia comer sozinha e derrubava desastrada a comida que tentavam lhe dar, deixando a roupa uma completa imundície. Agora, nem em pé conseguia ficar, e, na ausência da fralda, os lençóis deixaram de ser brancos para dar lugar a um tom amarelo e marrom, úmidos e malcheirosos. Um dos parentes, rendido, disse afinal:

   - Chamem a diarista. E chamem logo.

   A segunda-feira começou radiante para d. Sônia. A casa voltou a ser habitada apenas por ela e por Albertina, dedicada e solícita, como sempre. A velha levantou-se com plena disposição. De roupa limpa e asseada, nunca se sentira tão bem antes. O mal-estar de um idoso, d. Sônia o sabia, era um meio único e infalível de revelar grandes verdades.



Cristiane Krumenauer é autora de Atrás do Crime e Chamas da Noite (romances), Memória, Imaginação e Narração (crítica literária) e da série Contos da Namíbia (contos de suspense)